Anunciado em novembro pelo ministro da economia, Paulo Guedes, o Plano Mais Brasil inclui três Propostas de Emenda Constitucional (PEC) que pretendem acertar as contas fiscais em nível federal, estadual e municipal. Entre elas, a extinção de municípios que não conseguem se sustentar financeiramente.
A PEC do Pacto Federativo, sob a égide de “uma cultura fiscal de austeridade e sustentabilidade”, prevê desaparecer com municípios que arrecadam menos de 10% da receita total de sua cidade e tem menos de 5 mil habitantes. Sob uma estimativa de economia de R$500 milhões de reais, estima-se que cerca de mil municípios sejam acoplados à territórios vizinhos.
Quando lançada, a PEC foi criticada por entidades como a Frente Nacional dos Prefeitos e pela Câmara dos Deputados, sob alegação de uma construção feita com pouco embasamento teórico. A Confederação Nacional dos Municípios emitiu uma nota oficial adicionando que os critérios medidores de sustentabilidade financeira não são claros e insuficientes.
“A análise de uma cidade não pode ser realizada dessa forma. Os principais indicadores a serem considerados devem ser a população e os serviços públicos prestados. Afinal, é para isso que serve o poder público – prestar e entregar condições básicas para que seus cidadãos possam progredir e produzir, pagar impostos e promover o crescimento econômico e social. Somente assim o Brasil pode se desenvolver.”
O redesenho da municipalidade brasileira implica não somente alterações na geografia dessas cidades, mas também em suas memórias e identidades. Para Danielle Klitowitz, coordenadora do Instituto Pólis, a decisão não pode ser tomada de maneira leviana:
“Existe no Brasil uma série de tipologias municipais complexas, e para pensar as cidades e sua existências não se pode pensar somente a partir de porte e das condições de arrecadação fiscal.”
Em paralelo, a PEC abre precedente para ampliar uma discussão urgente: o porquê da insustentabilidade financeira de muitos municípios e a importância de um planejamento federativo que considere as especificidades de cada território. O Portal Aprendiz conversou com Danielle Klitowitz sobre o tema:
Portal Aprendiz: Ainda que imersa em críticas, a PEC olha para a factual debilidade financeira dos municípios. Por que as cidades carecem de autonomia financeira?
Danielie Klitowitz: Tem algumas questões que são importantes trazer quando a gente pensa nisso: uma é o federalismo brasileiro. A Constituição de 1988 teve uma pauta municipalista, após dez anos da que se convencionou chamar a década perdida, com uma crise econômica que afetou muito os municípios, inclusive nas suas políticas urbanas.
Ainda no bojo dessa década, os municípios estavam tendo problemas, e é nesse território que o calo aperta. O primeiro lugar onde o cidadão mora, antes do país e do estado, é o município, e mesmo que ele não tivesse autonomia, a primeira reclamação chegava ao prefeito. É na municipalidade que a pressão social é sentida, principalmente nas pautas urbanas e territoriais.
Então a Constituição, construída em sua maioria num campo democrático e progressista, é baseada na ideia de que o município tem que ter autonomia e força para poder praticar políticas urbanas; ela diz que eles não precisam responder ao Estado para tudo e lhes dá muitas atribuições. No entanto, a Carta Magna não deu autonomia financeira aos municípios. Existe uma centralização de recursos muito fortes estabelecida na Federação e o município tem obrigações igualmente fortes.
Portal Aprendiz: Então embora autônomos na legislação, os municípios dependem dos crivos federais e estaduais, e não são independentes nas suas instituições e na sua saúde financeira.
Danielle: É importante lembrar que vivemos em um país continental, com uma diversidade monstruosa de cidades; temos São Paulo, uma cidade que poderia ser várias cidades; municípios na Amazônia com áreas territoriais gigantes que tem um núcleo urbano concentrado mas pouca capacidade institucional de lidar com as questões do território; e cidades com apenas 800 habitantes.
São também amplas as incapacidades institucionais. A Constituição relegou um corpo de ações políticas fortes, mas não teve processo de institucionalização dos municípios para que eles pudessem assumir novas tarefas. Pense nas políticas territoriais, por exemplo: uma grande parte dos municípios não têm um arquiteto no seu corpo de servidores, uma pessoa com especialidade e formação para pensar o território, sendo que a atribuição da política de uso e ocupação do solo é estrita do município.
Temos por fim a questão financeira: muitas localidades dependem exclusivamente de transferência, tanto voluntárias quanto constitucionais, e não conseguem produzir recurso. [Danielle se refere tanto ao Fundo de Participação dos Municípios, que garante constitucionalmente tributos arrecadados pelos Estados e pela Federação e também à transferências voluntárias dos estados, sem obrigação legal, que são feitas esporadicamente].
Portal Aprendiz: Quando apresentada a PEC do Pacto Federativo, a crítica é que ela parece pouco baseada em estudos sobre municipalidade já existentes. Qual a opinião do Instituto Pólis sobre a PEC?
Danielle: Temos uma série de tipologias de cidade, e porte e condição de arrecadação fiscal não informa tudo que se precisa saber sobre uma cidade. A PEC é rasa, porque propõe uma mudança de constituição profunda, mas sem mostrar os pressupostos, os estudos que levam a isso e as consequências.
A ideia da proposta vem de um discurso de que os municípios não conseguem produzir recursos, então não faz sentido eles existirem. Mas os municípios têm que gerar riqueza? Existem aqueles que não produzem riqueza porque tem uma função ambiental, a de proteger e gerir uma grande porção de terra. É o caso de São Lourenço da Serra (localizado no estado de São Paulo com grande território de Mata Atlântica). Ele pode não produzir riqueza, porque o território está protegido, mas isso não significa que ele não seja rico. Se ele for acoplado será que a gestão do município maior vai olhar com cuidado para essa área?
Uma outra questão é: Para onde vão retornar esses municípios? Nas últimas décadas houve uma criação grande de municípios, que foram saindo de cidades maiores por vários motivos, inclusive financeiros. Há também municípios que se emanciparam e talvez não faça sentido, pois não tem capacidade de serem independentes.
Ainda é importante entender quais as consequências para os municípios que recebem essas possíveis cidades. A PEC está pegando os que são pobres e com desigualdades profundas e vai anexá-los a cidades que também tem desigualdades profundas.
Portal Aprendiz: Um dos aspectos que foi pouco falado é a questão da perda de identidade e sentido de pertença caso esses municípios venham a ser aglutinados.
Danielle: Para além de serem um lugar de vivência cotidiana, eles são lugares de construção de identidade do cidadão. Ela é construída a partir da memória histórica, não só a de construção física. Estamos falando de patrimônios imateriais.
A ilha de Itaparica, por exemplo, que segundo a PEC poderia ser anexada à Salvador. Essa cidade tem um tipo de candomblé bem específico que só acontece em poucos lugares baianos e que constitui grande parte da identidade da população local. Se ela for acoplada em Salvador, isso vai virar mais um aspecto da capital, mais um terreiro, se diluindo em uma cidade maior. Acoplar cidades é dizer que não importa o locus onde as pessoas vivem. É dizer que essas vivências não são importantes e pertinentes, que é possível diluí-las.
Isso é uma violação profunda do direito à cidade. Um dos aspectos do direito à cidade é justamente o acolhimento e pertencimento. As vivências, a memória coletiva, e não só do que está lá, mas do processo de construção da cidade, de como aquele ambiente e território foi construído e pensado pelas pessoas, a partir de um caminho pessoal e de luta social.
Via Portal Aprendiz.